"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente"
Fernando Pessoa
Não faltam textos atuais descrevendo o fim da Arte, e que sua função histórica deixou de ter sentido. Sem dúvida, em todos os lugares existem mostras de que a manifestação artística se afastou das bases sociais de sua gênese. Se entendermos a Arte, em sua forma mais primária, como manifestação singular de uma dada cultura, historicamente localizada. Sendo elemento de integração, explicação ou mesmo lúdico, necessários ao convívio social. Um ente agregador, quase um reflexo das condições da vida humana, sua existência, bem como, a superação mágica dos obstáculos reais. Tínhamos uma arte engajada, como parte indissociável do mundo que a produzia. De tal forma que não poderíamos entender um momento histórico, sem termos a noção das manifestações artísticas. E muitas vezes, só existia a possibilidade de estudar um determinado período da história, através dos legados deixados pelos artistas da época.
Podemos entender o descrito, como uma relação simbiótica entre a arte e a cultura de uma sociedade, arte era cultura. O desenvolvimento social, a cultura e a arte andavam juntos, como a sociedade da Antiga Grécia nos demonstra de forma lapidar. Podíamos mesmo, medir o grau de desenvolvimento destas categorias, estudando cada uma delas isoladamente.
Porém, algo ocorreu no decorrer de nossa história, em algum ponto a dissociação entre cultura, sociedade e arte se efetivou. O ensaio aqui não está voltando para determinar esse momento, mais, sobretudo entender ou tentar entender se a Arte como conhecíamos se perdeu, ou se a própria manifestação artística deixou de ter um significado social, ou mesmo, a perda do paralelo com próprio processo cultural. O que é hoje uma obra artística? Um artista? Qual é o papel deles no mundo moderno?
O conceito
Do ponto de vista terminológico, o conceito arte é antes de tudo um domínio de uma técnica para expressar um conteúdo, unindo-os de tal forma que ambos eram a expressão de uma vanguarda social, fazendo com que novas barreiras fossem rompidas. Sendo a gênese de novos horizontes e visões de mundo. Porém, a certa altura, a arte deixou de ser a vanguarda da técnica, de como fazer algo da melhor forma, o termo atual é tecnologia. A tecnologia tomou da arte a vanguarda da forma de produzir, a arte do fazer técnico, sem se preocupar com o conteúdo da produção. Não se procurava mais um produto único, cujo o conteúdo o diferenciaria dos demais.
O Artesão, um misto de artista e técnico, foi substituído pelo Operário e o Inventor/Cientista. A partir deste ponto, nunca mais a arte seria a mesma. O principal processo criador da sociedade humana passou para a tecnologia, impulsionado pelo capital a serviço do lucro. A Arte perde assim seu primeiro papel histórico. Outro ponto de ruptura, foi a perda com controle das fases da produção de sua obra por parte do artista/artesão, algo cada vez mais distante da arte atual, cada vez mais dependente de múltiplos processos e objetos, toda uma infra-estrutura.
O artista ainda teria que dominar uma técnica, mas, agora, ficava a serviço de sua criação ou da reprodução de sua criação. O autor e o interprete ora sendo uma única pessoa, ora sendo pessoas distintas, ainda eram os “verdadeiros” artistas. Porém, uma vez apartada a arte, da produção, o artista teria que sobreviver da venda de suas obras, não mais entendidas como um produto socialmente necessário para a sobrevivência da sociedade, mas como algo a ser admirado pela excelência de seu conteúdo e técnica de execução. A arte passou para um mundo sem utilidade econômica. Assim, surge a figura do Mecenas, aquele que sustenta o artista, para que o mesmo produza suas obras, ora encomendadas ou feitas graças ao sustendo propiciado pelo seu bem feitor.
Esta dicotomia ou dualidade sobrevive até os tempos modernos, como a eterna luta entre o livre pensar, produzir e as necessidades de sobrevivência do chamado artista, fala-se, modernamente, em arte comercial ou feita para se tornar uma mercadoria com preço de venda, capaz de sustentar o autor da obra com seu ofício. Ao contrário de antes, quando a arte era produzida por aqueles que a faziam como deleite, ou mero exercício de seu lazer, após ou durante o trabalho.
A tecnologia como arte
Mas durante o século XX, sobretudo, a tecnologia antes restrita a alguns setores da produção de bens, avança sobre todos os outros setores, de tal forma que as figuras do autor e do interprete começam a sofrer grande erosão. Os recursos audiovisuais, a gravação de som, filmes e as fotos, retiram da arte, o papel de registrar seu tempo, de ser um reflexo íntimo da cultura que lhe deu origem. Em suma, o processo artístico deixa de ter qualquer relevância no processo social, passando agora a uma manifestação sem raízes históricas, mas como veremos a seguir, o avanço da tecnologia ainda produziria mudanças mais radicais, na medida que a tecnologia a serviço da empreitada comercial, descaracterizaria ainda mais a noção da arte.
Além do mais, o avanço da técnica e o desenvolvimento do chamado mercado de obras artísticas, tratados como investimento dado o seu valor como obra única, fez surgir um mercado milionário das falsificações, tornando-se, por vezes, impossível distinguir a obra original de suas cópias, ou mesmo de quadros e outras obras de artes atribuídas a autores, sem que jamais fossem produzidas por eles.
A verdade é que o surgimento e o desenvolvimento de uma série de novas tecnologias, tais como:as áudio visuais, a eletrônica, os computadores, as comunicações, fez com que o artista, não mais necessitasse de uma técnica para realizar seu produto ou facilitou de tal forma aprendizado da técnica, que qualquer um poderia ser “artista”. De certa forma a exposição permanente e diária de qualquer pessoa, faz com que a mesma possa representar sua própria vida em forma de arte. De certo modo vivemos todos num grande palco, aonde qualquer pessoa pode se apropriar das formas de expressão que antes eram acessíveis apenas aos iniciados, ou seja, aos artistas.
A desumanização
A Arte, ou a função social ocupada pela manifestação artística, foi substituída pela diversão, o entretenimento, na verdade o espetáculo. No espetáculo a forma, a técnica se sobrepõe de tal forma ao conteúdo, que a noção de arte se perde. São como os Big Brothers da vida, ou toda a gama espetacular de diversão, aonde nada é feito em função da cultura humana, não existe ética ou questões complexas no espetáculo, ele é feito para “entreter” tão somente. Como os filmes de Hollywood, são antes de tudo grandes empreendimentos técnicos com objetivo de lucro.
É certo que ainda podemos identificar manifestações ou obras artísticas em nosso meio social, mas são a chamada cultura marginal, ou algo para uma elite, um gueto. O que move as massas são os espetáculos. Vivemos num mundo em que o ser, o ter, foram suplantados pelo parecer. Todos podem ser artistas, o discurso, se dissociou das práticas, todos são performáticos, todos agem de maneira diferente na frente das câmeras. A interpretação da vida é algo do cotidiano, ao alcance de cada habitante das novas sociedades tecnológicas. Aonde o desperdício, o aparecer, o consumir, levou a uma total perda de referência de valores. Cultuamos hoje mais objetos tecnológicos, como aparelhos de telefone celular, tvs de plasmas que as grande obras clássicas escritas no decorrer dos séculos. A felicidade pode ser comprada, e a vida feliz pode ser contada, melhor, reescrita para melhor iludir o seu próprio autor.
Todos são artistas
Os meios tecnológicos disponíveis fizeram com que cada habitante do planeta possa contar sua própria versão de vida, sua autobiografia instantânea, sua felicidade, seu mundo perfeito e maravilhoso, todos podem ter seu álbum de fotografias, seu perfil no Orkut, para que todos possam visitar, é claro com milhões de poses possíveis, chegando mesmo ao grotesco, ao escatológico. Como poderia dizer Fernando Pessoa, nestes perfis todos são inteligentes, sensíveis, honestos, autênticos, seres perfeitos. Menos humanos. Podemos fazer nosso próprio show, ainda que, não exista nada de relevante nele, sendo apenas imagens repetidas ao extremo. É a forma vazia, ou o vazio como conteúdo.
Da mesma forma, todos são modelos, artistas, jornalistas, escritores, poetas, nunca o charlatanismo esteve tão em voga, é na verdade uma das facetas da sociedade de voyers que nos tornamos. O espetáculo não é um universo de imagens, conceitos, idéias, mas uma relação social entre telespectadores, ou seja, uma relação social mediada pela mídia. Não é um apêndice do mundo real, mas o palco do irrealismo da sociedade real. De certa forma é a nova arte, ou o fim da arte enquanto conteúdo significante.
EU